O céu estava nublado no aeródromo de São Miguel do Iguaçu, uma pequena
cidade paranaense na tríplice fronteira do Brasil com o Paraguai e a
Argentina. Nada, no entanto, que impedisse o voo inaugural do primeiro
Veículo Aéreo Não Tripulado (Vant) da Polícia Federal (PF) naquela manhã
de 10 de novembro de 2011. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo,
a quem a PF está subordinada, foi até a pista ver de perto a aeronave
capaz de filmar e fotografar a placa de um carro ou o rosto de um
traficante de drogas a 9 quilômetros de altura. Em seguida, Cardozo se
dirigiu ao auditório improvisado para falar sobre a maior arma anunciada
contra o narcotráfico pelo governo da presidente Dilma Rousseff, uma
promessa feita na campanha de 2010: a compra de 14 Vants israelenses,
por R$ 655 milhões. Ao fundo do palco onde o ministro discursava, havia
um pôster gigante com a foto do avião em voo e o título em letras
garrafais: “Fase operacional”. Uma frase que não saiu do papel.
Na linguagem policial, operacional quer dizer ação prática. O Vant
passaria a fazer missões rotineiras. De acordo com documentos obtidos
por ÉPOCA, isso não aconteceu. Depois da festa de inauguração, o avião
foi recolhido ao hangar do aeródromo onde fica a base de operação. Os
equipamentos foram encaixotados e estão assim até hoje. Uma segunda
aeronave já comprada continua em Israel, sem previsão para ser enviada
ao Brasil. Não se fala mais em comprar outros 12 aparelhos como foi
previsto no início e alardeado com pompa. Brigas internas na PF e o
descaso do Palácio do Planalto ameaçam abater, ainda em solo, o projeto
no qual o governo já gastou R$ 73 milhões. O valor inclui os dois aviões
e o material necessário (antenas e computadores) para mantê-los no ar.
Operado por um piloto em terra, que digita os comandos no computador
das estações, o avião pode voar por 37 horas ininterruptas a uma
distância de até 4.000 quilômetros, enviando imagens on-line para a base
sobre as atividades de narcotráfico nas fronteiras brasileiras. Com a
varredura, seria possível saber onde os criminosos se escondem, para
onde enviam drogas e, principalmente, vigiar seus passos e prendê-los. O
combate na fronteira boliviana tem um caráter especialmente crucial
para os brasileiros. Pelo menos 54% da cocaína que chega ao Brasil vem
do país andino. Boa parte se transforma no crack que assombra nossas
metrópoles.
A previsão era instalar quatro bases. Além de São Miguel do Iguaçu,
outras três funcionariam em Brasília, no Distrito Federal, Vilhema, em
Rondônia, e Manaus, no Amazonas. Em junho, a Procuradoria da República
no Paraná começou a receber informações de que não havia mais decolagens
na primeira estação inaugurada por Cardozo. Os procuradores descobriram
que o Vant estava parado. Como o projeto não decolou, a Procuradoria
entrou na Justiça para o governo aumentar o número de policiais. O
pedido foi rejeitado pela Justiça Federal.
O Brasil tem 11.600 quilômetros de fronteiras com Colômbia, Peru,
Bolívia (países produtores de cocaína) e Paraguai (fornecedor de
maconha). Para cobrir toda essa extensão, a PF conta nessas regiões com
apenas 14 delegacias e 826 policiais. A relação é de um agente para cada
16 quilômetros e de um delegado por 100, segundo o cálculo do Tribunal
de Contas da União (TCU) num relatório recente de avaliação da política
de combate ao narcotráfico. O TCU recomendou ao governo contratar por
meio de concursos mais 3 mil policiais. E destacou o projeto do Vant
como o avanço mais significativo diante da falta de pessoal.
Um relatório da PF, de março deste ano, mostra que essa vantagem é
desperdiçada. Durante 2011, o projeto do Vant contou com um orçamento de
R$ 70 milhões. Isso permitiria a compra de equipamentos e combustível,
além de treinamento de pilotos. O documento da PF diz que, “por
problemas técnicos”, apenas R$ 6,3 milhões foram efetivamente gastos.
Se não é por falta de dinheiro, por que o Vant não sai do chão? O
presidente da Associação dos Delegados Federais, Marcos Leôncio, afirma
que a PF está sem contrato de manutenção da aeronave, o que impede a
decolagem. “Também existe uma dúvida do governo sobre se o Vant fica com
a PF ou será entregue à Aeronáutica”, diz Leôncio. Essa alternativa
poderia criar um conflito com Israel, porque o equipamento foi vendido
exclusivamente para a atividade policial, e não militar. A PF chegou a
divulgar, no dia do voo inaugural, que era a primeira polícia do mundo a
usar o Vant para esse fim.
A origem do imbróglio está em divergências na cúpula da PF
desencadeadas em 2011. Em janeiro daquele ano, a direção-geral da PF
mudou de mãos, passando ao delegado Leandro Coimbra. Ele assumiu o posto
no lugar de seu colega de profissão Luiz Fernando Corrêa, que defendia
para Dilma o emprego dos aviões-robôs. Na gestão de Coimbra, contratos
foram interrompidos. A mesma empresa que forneceu os aviões, a Israel
Aerospace Industries, treinaria uma congênere brasileira para cuidar da
manutenção do programa no futuro. O argumento usado pela área de
logística para suspender esse contrato foi um processo aberto pelo TCU
para apurar acusações de irregularidades nos pagamentos à empresa
israelense. O Tribunal investiga a despesa de R$ 24,6 milhões para o
treinamento de 13 pilotos (R$ 1,9 milhão por cabeça). O processo ainda
não foi concluído. Ele não significa o fracasso do projeto. A PF diz que
prepara um novo contrato de manutenção e que receberá o segundo Vant
ainda neste ano. Somente então vai avaliar se compra as outras 12
aeronaves inicialmente previstas.
A tecnologia de ponta dos aviões é uma arma para combater um novo
esquema montado pelo narcotráfico nas fronteiras. Em outubro do ano
passado, ÉPOCA revelou que os novos barões da droga terceirizaram parte
das etapas, como refino, transporte e comércio dos entorpecentes. Eles
passaram a atuar também nos países vizinhos. Grandes carregamentos de
cocaína e de pasta-base de coca, matéria-prima do crack, são lançados de
aviões em fazendas no lado brasileiro.
Nas fronteiras com Colômbia, Peru e Bolívia, policiais federais se veem
diante de uma luta de guerrilha. No fim de 2010, dois agentes federais
morreram baleados no Rio Solimões, a 240 quilômetros de Manaus, quando
interceptaram uma lancha que transportava cocaína. Uma das principais
funções do Vant é passar informações aos homens em terra, adiantando a
posição do inimigo durante uma situação de confronto. Para os policiais
na linha de frente contra traficantes fortemente armados, os veículos
não tripulados podem representar uma proteção a sua vida.
Fonte: G1 (com informações da Revista Época)