segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Salvem os Aeroclubes do Brasil!


No início dos anos 1940, durante o Estado Novo do Presidente Getúlio Vargas, foi organizada uma campanha para formar pilotos para o Brasil, idealizada pelo jornalista Francisco de Assis Chateaubriand, proprietário do poderoso grupo de comunicações Diários Associados e com apoio declarado do governo. Foi denominada Campanha Nacional da Aviação.

A campanha, cujo lema era "Dêem asas para o Brasil", previa que aeroclubes, entidades civis sem fins lucrativos, fossem organizadas pelo Brasil afora, a partir de iniciativa da própria sociedade. Uma vez organizados, e desde que tivessem um campo de pouso para operar, além de, pelo menos, um hangar, os aeroclubes receberiam aeronaves do governo, e algum apoio financeiro, para iniciar e manter suas atividades de formação de pilotos e prática de aero-desportos. A população, através de doações, fornecia recursos para a aquisição dos aviões. Afinal, em tempos de guerra mundial, a formação de pilotos era uma atividade estratégica para o país.

Passadas sete décadas, a situação é outra, muito diferente. Muitos aeroclubes entraram em séria decadência, e não há mais nenhum auxílio do governo para manter as entidades em funcionamento. As entidades também passaram a ser perseguidas pelas autoridades e pelos administradores de aeroportos, interessados apenas na atividade comercial. No Rio de Janeiro, por exemplo, o antigo e centenário Aeroclube do Brasil recebeu ordem de despejo da Justiça, em processo de reintegração de posse movido pela INFRAERO, que alegou precisar de espaço, situado no Aeroporto do Jacarepaguá, para o absurdo propósito de alocar funcionários ociosos que viriam do Aeroporto do Galeão, que foi recentemente privatizado. Em João Pessoa, o Aeroclube da Paraíba há anos luta contra um processo de desapropriação, movido pela prefeitura, e inclusive já teve a sua pista destruída pelo governo municipal. Aparentemente, os processos ainda correm no Judiciário.

Muitos aeroclubes se adaptaram aos tempos e se profissionalizaram. Entidades como, por exemplo, os Aeroclubes do Rio Grande do Sul, de São Paulo, do Paraná, de Jundiaí, de Pará de Minas e de Londrina, entre outros, hoje são, basicamente, centros muito bem organizados de formação de pilotos profissionais, que oferecem cursos de Piloto Privado, Piloto Comercial, Vôo por Instrumentos, Instrutor de Voo e, em alguns casos, cursos de Mecânico de Manutenção Aeronáutica e de Comissário de Voo. Outros se dedicam apenas ao aero-desporto, modalidade esportiva hoje acessível a poucos afortunados, e outros que mantém, a duras penas, o propósito original de formação de Piloto Privado e algumas atividades aero-desportivas. São esses últimos que estão em pior situação, e os já poucos sobreviventes vivem apenas da abnegação e paixão de seus dirigentes por suas antigas entidades.

De qualquer forma, manter um aeroclube em funcionamento não é uma tarefa fácil. Os custos fixos são altos, como também são para as escolas de aviação privadas, as frotas consistem de aeronaves antigas e obsoletas, e as regras de utilização do espaço aéreo estão cada vez mais restritas para a aviação geral. Em épocas de crise econômica, os alunos minguam, e, sem poder repassar os crescentes preços de manutenção, combustível e recursos humanos, as margens de rentabilidade baixam a pontos potencialmente perigosos. Existe, nos aeroclubes, uma relativa instabilidade administrativa devido à renovação das diretorias a cada dois anos, e à proibição de remuneração dos dirigentes das instituições.

Aeroclubes com mais de sete décadas de existência, como os de Lajes e de Joinville, ambos em Santa Catarina, fecharam as portas recentemente, especialmente devido à redução da demanda e à crise econômica. É certo, também, que vários aeroclubes e escolas privadas de aviação sofrem, e quebram, com gestões  ruins. Os Aeroclubes, devido à sua própria natureza jurídica, e pelo fato de terem diretorias renováveis a cada dois anos, sofrem também com restrição de crédito a longo prazo, o que dificulta ainda mais os investimentos ou a sobrevivência em caso de crise. 

Recentemente, a prestigiosa revista Aero Magazine fez uma reportagem sobre a situação em que se encontra a frota de aeronaves doadas pela União aos Aeroclubes, em especial os aviões Aero Boero, que foram entregues aos Aeroclubes entre 1988 e 1994. A reportagem afirma que esse patrimônio público encontra-se abandonado em grande parte. Isso é uma meia-verdade.

Naturalmente, é de se esperar um considerável desgaste da frota de aeronaves de instrução, durante um tempo de vida que se aproxima dos 30 anos, ainda mais levando-se em consideração que tratam-se de aeronaves, no caso dos Aero Boeros, de trem de pouso convencional, mais sujeitos a eventuais incidentes e acidentes no solo, devido à própria configuração. Mas, não é só isso...

Existe uma grande dificuldade de aquisição de peças de reposição para os Aero Boeros, existe apenas um fornecedor desses componentes para o Brasil inteiro e algumas peças sequer são mais fabricadas, o que torna impossível a sua reposição, a não ser através da canibalização de outras aeronaves. Por vezes, as aeronaves ficam meses paradas a espera de entrega de peças de reposição.

Vale dizer que, quando o DAC começou a entregar os Aero Boeros, a aeronave foi cercada de muito preconceito, e dizia-se que não durariam nem cinco anos em operação. Contra essa expectativa, essa aeronave revelou ser muito robusta, segura e de baixo custo operacional. Ao contrário de várias aeronaves mais antigas, é pouco propensa a incêndios, é muito didática e tem um desempenho bastante aceitável como aeronave de instrução. Praticamente todos os acidentes ocorridos com o tipo tiveram como fator contribuinte principal o fator operacional. 

Outro problema é o entrave burocrático que cerca a operação desses aviões. As aeronaves que foram doadas a entidades que já encerraram as atividades, e que, muitas vezes, ainda estão em condições de aeronavegabilidade, ou bem perto disso, não são mais repassadas a outros aeroclubes ativos, sendo que existem vários casos de aeronaves que foram repassadas, mas que nunca foram autorizadas a operar. Existe ainda uma grande insegurança sobre o que vai ser feito desses aviões, o que deixa o operador apreensivo, se é necessário fazer uma revisão geral no motor, ou recuperar uma aeronave inteira, porque não se sabe se, um dia ou outro, o Governo vai recolher, vender ou redistribuir os aviões, com grande prejuízo para o Aeroclube que precisa fazer um grande investimento neles.

Outra aeronave que foi adquirida pelo DAC para equipar os aeroclubes, e substituir ou complementar os Aero Boeros, foi o Aeromot AMT-600 Guri. Essas aeronaves revelaram ser um verdadeiro desastre como aeronave de instrução básica: possuem bequilha louca, precisando de freios diferenciais para taxiar e também para decolar, e são muito pesadas para a pouca potência de motor, no caso 900 Kgf MTOW para apenas 116 HP de potência. O resultado é que praticamente não podem ser operadas em aeródromos mais elevados ou quentes, e que o uso de bequilha louca é totalmente inadequado para a missão de treinador básico, além de requerer maior comprimento de pista para a decolagem, já que o uso dos freios para manter a reta consome boa parte da energia necessária para decolar.

A operação dos Aeromot Guri também foi cercada de entraves burocráticos. O Aeroclube do Brasil, por exemplo, recebeu várias aeronaves, mas nunca teve autorização para utilizá-los, sendo por isso abandonadas pela instituição, que nem ao menos pode devolvê-las.

Outro absurdo que cerca a gestão de frota de aeronaves dos aeroclubes foi a "doação" de aeronaves antigas, antes pertencentes ao Departamento de Aviação Civil, aos aeroclubes, quando os Aero Boeros foram entregues. Inexplicavelmente, essas aeronaves antigas foram "doadas" com cláusula de inalienabilidade. Muitos aeroclubes conservam essas aeronaves em algum fundo de hangar, por impossibilidade de operá-las, já que a maioria nem sequer possuem sistema elétrico, o que impossibilita instalar sistemas de rádio e transponder, indispensáveis para voar na maior parte do espaço aéreo disponível.

Sem poder voar os velhos aviões, pois um upgrade e a recertificação seriam totalmente antieconômicos, e sem poder vender para operadores privados, ou mesmo outras entidades de ensino, o fim desses aviões será, seguramente, o lento apodrecimento nos fundos de hangar pelo Brasil afora, e não há outra solução a vista. 

Outro problema sério que já está afligindo os dirigentes de aeroclubes é a desativação dos NDB - Rádio Faróis não Direcionais, e mesmo de alguns VOR - VHF Ominidirecional Range. Em muitas terminais, a maioria dos procedimentos de aproximação por instrumentos estão sendo feitas por RNAV (baseados em equipamentos GPS ou Inerciais), e os velhos aviões de instrução dos aeroclubes não são equipados para tal operação. Existem duas soluções para isso: ou o Aeroclube equipa os aviões, ou compra/arrenda aeronaves já equipadas. Nenhuma das soluções é barata, e repassar esse custo para a hora de voo, num momento de crise econômica, pode ser praticamente inviável. Com certeza, muitos aeroclubes e escolas de aviação privadas serão forçadas a suspender sua instrução de voo por instrumentos, até mesmo porque os manuais, tanto práticos quanto teóricos, desses cursos de voo por instrumento estão totalmente obsoletos.

Por fim, resta o problema da necessidade de reformulação da legislação pertinente. Começa pelo próprio Código Brasileiro de Aeronáutica, que é mais antigo que a própria Constituição. Os RBHA (Regulamentos Brasileiros de Homologação Aeronáutica) 140 (que trata dos Aeroclubes) e 141 (que trata de Escolas de Aviação Civil) também estão obsoletos. Recentemente, a ANAC fez uma consulta pública de uma proposta de criação dos RBAC (Regulamentos Brasileiros de Aviação Civil) 140 e 141, mas a proposta não agradou ninguém, e é tida como impraticável tanto pelos aeroclubes quanto para as escolas privadas, e ainda não comtempla, de forma alguma, a situação dos cursos de aviação civil em nível de ensino superior. Nesse caso, a solução proposta parece pior que o problema. 

De qualquer forma, parece que existe pouca preocupação da ANAC com a situação tanto dos aeroclubes quanto das escolas privadas de aviação civil. As exigências da agência crescem, exige-se padrão de primeiro mundo, mas  não existe qualquer apoio à formação de pilotos e profissionais de aviação. Seriam bem vindas, por exemplo, desoneração fiscal em cima do preço dos combustíveis, adaptação das operações de Controle de Tráfego Aéreo para a instrução, já que essa atividade é essencial, pois daí vem os tripulantes do futuro, e definição a respeito da situação das aeronaves doadas ou cedidas, que há muito tempo já se depreciaram contabilmente como patrimônio público, mas que são úteis aos aeroclubes que as utilizam.

Hoje, com baixa demanda no setor aéreo, que atinge até mesmo a Força Aérea Brasileira, os aeroclubes e escola conseguem fornecer pessoal capacitado para o setor, mas, quando houver retomada do crescimento econômico,  poderá haver um "apagão" de mão-de-obra, como acontece na Ásia, por exemplo, a não ser que as autoridades olhem com mais atenção para o setor de instrução de voo.

Fonte: Cultura Aeronautica

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