terça-feira, 15 de novembro de 2016

Segurança de Voo e Investigação – Será que fazemos Direito?

Por EDUARDO ALEXANDRE BENI
Sócio Diretor da empresa Evoluigi
Editor do Portal Piloto Policial


Ao longo do tempo trabalhando na aviação, para entender melhor esse negócio, como muitos, fui buscar conhecimento em suas diversas aéreas: na gestão, no direito, no jornalismo, na história, na própria aviação, etc.

Percebi nos estudos e na prática que a aviação é multidisciplinar, mas apesar de falar um pouco de tudo, seu relacionamento com elas é distante, as vezes tão distante que constrói barreiras ou muros. Se não a única, uma das poucas aéreas que cresceu com a aviação foi a engenharia, tanto é verdade que existe o reconhecimento da engenharia aeronáutica.

A psicologia, a pedagogia, a medicina, a gestão pela qualidade, etc ainda buscam seu espaço na aviação. No direito acontece a mesma coisa, mas bem diferente, pois o sistema que cuida da segurança de voo construiu “obstáculos”, até jurídicos, dificultando o ingresso do direito nessa atividade. E porque o direito é “alijado” da segurança de voo? A segurança de voo foi criada como regra universal da aviação para proteger quem? Quem ou o que a segurança de voo protege? Porque o direito é visto como “vilão” nessa história?

Vamos falar um pouco sobre isso e refletir.

Para aqueles que trabalham com segurança de voo em uma organização sabe como é tormentoso lidar com um incidente, acidente ou qualquer ação que afete a segurança das operações aéreas. Esse é um assunto que nós aviadores, em algum momento da profissão, tivemos que enfrentar. Saber tratar e entender os fatos apresentados e diferenciá-los de fofocas, sensacionalismos, subjetivismos e prejulgamentos é uma difícil tarefa desempenhada por essas pessoas.

Ao longo do tempo vi muitos profissionais atuarem na segurança de voo buscando somente os motivos e também vi muitos aeronavegantes serem “penalizados” sem terem qualquer direito de defesa. Usamos os modelos inquisitivos em processos da prevenção. Ora, a segurança de voo, por vezes, prega um coisa e executa outra. Fala que não se deve punir, porém usa basicamente as mesmas ferramentas de quem pune.

Se esse aeronavegante morrer no acidente, jamais terá esse direito. Todos os especialistas farão isso por ele. Cada um com sua versão. Se sobreviver terá que lidar com a velocidade da informação e com suas contradições, as vezes, sem conseguir dizer com clareza o que realmente aconteceu. Se conseguir falar, verá no semblante de algumas pessoas a dúvida, mesmo falando a pura verdade do fatos.

Nessa onda de que tudo na segurança de voo deve ser reportado e possui tratamento “sigiloso”, as vezes nem o autor fica sabendo que “errou” ou porque foi “penalizado”. Pior, somente depois de longos anos é publicado um relatório com as possíveis causas, porém mais se parece com um relatório de inquérito policial (que alias essa é sua origem), do que um relatório de pesquisa (análise, auditoria, etc).

Os relatórios atuais sugerem prováveis causas do acidente, e as vezes até apontam “responsabilidades”, principalmente quando ingressam na análise subjetiva da conduta da tripulação, pouco contribuindo para a melhoria do sistema. Esse é o papel da segurança de voo e desse modelo de “investigação”?

Nesse processo, por uma questão histórica global, utiliza-se o modelo investigativo (policial, judiciário), quando na verdade deveriam ser utilizados outros modelos, como pesquisa, estudo, análise, auditoria. Parece que na investigação e nas ações decorrentes de fatos que já ocorreram se gasta muito mais energia e trabalho do que nas ações preventivas e preditivas.

Lembrem que, havendo repercussão jurídica, ou seja, o acidente causou mortes ou danos materiais, o judiciário poderá utilizar todos os meios de provas legais para a formação de seu juízo. Essa é uma regra universal. Como afastar um documento público que possui informações de interesse público do direito?

Nesse sistema há uma uma relativização da regra universal da ampla defesa e do contraditório, corroborando com sua origem e característica inquisitiva. Chega a ser tão complexo e contraditório esse sistema, que permite na investigação a participação do fabricante da aeronave, dos motores, etc. mas ninguém, por exemplo, representando a tripulação ou a própria polícia. Há, mas espera ai, o fabricante que participa é isento e está na investigação somente por questões técnicas. Ele saberá separar as coisas e atuará de forma ética e honesta. Então, o representante da tripulação ou da polícia não serão, por isso não participam.

Pense, se esse modelo de “investigação” busca descobrir as prováveis causas de um acidente e assim evitá-los no futuro, pelo que se vê na prática, os acidentes continuam acontecendo e sempre mais do mesmo. A responsabilidade na esmagadora maioria dos casos é sempre a “falha humana”, a tripulação errou!!!!

Vamos refletir! Esse sistema foi criado mundialmente para “proteger” um mercado, afinal ele precisava ser autossustentável. Então, há por traz disso tudo um enorme interesse econômico, ou não? Veja quem participa da investigação de um acidente e analise os resultado do relatório. Nós aviadores defendemos um sistema, que na maioria dos casos, aponta o erro da tripulação. Há, mas o ser humano é falível né! Não é o que se diz sempre? Então, a engenharia afasta cada vez mais o homem do domínio da máquina. E o investimento nas PESSOAS?

Observe a construção das normas: A Convenção de Varsóvia de 1929 e a Convenção de Montreal de 1999 foram criadas para impôr limites indenizatórios para as empresas. Assim, ela protege quem? O anexo 13 da Convenção de Chicago de 1944 criou um regra de não punição e afastamento do judiciário do processo. Assim, ela impossibilita de suas análises a ampla defesa e o contraditório.

O que fazer então?

Não há muito o que fazer nesse sentido. Esse, afinal, é o sistema. Mas, uma boa solução seria mudar o modelo da investigação. Aliás, não utilizar mais esse modelo inquisitivo. Partir para os modelos da gestão. Não entrar em discussões subjetivas, principalmente as que analisam as condutas e aspectos psicológicos das tripulação, a não ser que consiga comprovar.

Saber que o piloto é arrogante, autoritário, tem problemas familiares, usa medicamentos, não dormiu, etc, contribui para melhorar a segurança de voo em quê? Quando faz isso não aponta responsabilidade? Aliás, gostaria de saber como uma autoridade escreve em um documento público que uma pessoa é arrogante ou autoritária sem comprovação científica ou por meio de provas. Realmente uma ação corajosa do ponto de vista jurídico.

Aqui, pretendo apenas apontar questões importantes e fazer com que nós aviadores pensemos sobre o assunto.

Será então que investir mais na prevenção e na predição não seria o melhor caminho? Será que não seria melhor deixar esse assunto de investigação para a polícia e a justiça? Será que não seria melhor adotar os modelos de pesquisa ou auditoria (Gestão) e abandonar esse modelo inquisitivo?

O próprio órgão governamental responsável por esse sistema trás em seu nome a palavra investigação e apoderou-se dela, deixando os demais órgãos em segundo ou terceiro plano. Há esqueci, é um sistema mundial e isso não vai mudar. Não é verdade? Existe um modelo cultural global baseado da investigação “policial”, então qualquer mudança cultural demanda tempo e perseverança.

Então, ao menos reflita sobre o tema e tire suas conclusões, pois em algum momento poderemos ser também vítimas desse mesmo sistema.

Bons voos com boa gestão!!!!!

Autor: É formado em Direito, Doutor em Segurança e Ordem Pública, especialista em Direito Público e Direito Aeronáutico. Coronel da Polícia Militar de São Paulo e por 23 anos trabalhou no Grupamento de Radiopatrulha Aérea – “João Negrão”. É piloto comercial de helicóptero e instrutor de voo, além de possuir cursos de Qualidade, Segurança de Voo e SGSO.

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